A CONSTITUCIONALIDADE DA MP 936/2020: A IRREDUTIBILIDADE SALARIAL E A ALTERABILIDADE CONTRATUAL.
Fernando Hugo R. Miranda
Doutor em Direito do Trabalho pela USP. Advogado.
I – A APOSTA DA MEDIDA PROVISÓRIA Nº 936/2020.
Cerca de 10 (dez) dias após a revogação do artigo 18 da MP 927/2020, pela qual havia sido criada a possibilidade de suspensão do contrato de trabalho pela via do contrato individual, o Governo Federal revisita o tema pela MP 936/2020. Desta vez, em texto mais amplo e também mais detalhado, o Governo explicita como se dará a participação financeira da União nas perdas experimentadas por trabalhadores em virtude da eventual adoção da redução de ganhos salariais em decorrência da redução ou suspensão total da jornada de trabalho.
Ao longo de 20 (vinte) artigos, é criado o Benefício Emergencial de Preservação de Emprego e Renda, verba indexada a partir do seguro desemprego, e as hipóteses de sua concessão. Os valores serão devidos de forma proporcional à perda experimentada pelo trabalhador.
O texto, já em suas primeiras horas, gerou não só dúvidas quanto à implementação de certos detalhes, como também severas críticas de associações civis ligadas ao Direito do Trabalho. As críticas acabaram por se condensar em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, a ADI 6363, cujo pedido liminar volta-se à neutralização do núcleo central da MP, ao investir contra a autorização legislativa conferida ao contrato individual do trabalho para reduzir jornada e salário ou suspender o contrato, a despeito das contrapartidas dos benefícios sociais estabelecidos. Segundo se advoga na Ação, apenas por meio de negociação coletiva seria possível se alcançar tais propósitos, estando infenso inclusive à legislação, ainda que temporariamente, estabelecer tal alcance ao contrato individual.
Propõe-se, assim, endereçar os aspectos jurídicos próprios à questão, os quais, como se verá, autorizam a conclusão quanto à constitucionalidade da Medida Provisória no particular de tal impugnação. Nesse intuito, inicialmente será considerado a regulamentação constitucional do tema da irredutibilidade salarial (seção II) para, em seguida, demonstrar-se que a novidade legal regula aspecto de natureza rigorosamente infraconstitucional, não se opondo, assim, à previsão constitucional (seção III). Em tempo, exarada decisão liminar monocrática nos autos da ADI 6363, são oferecidas, em conclusão, algumas considerações sobre a decisão.
É o que se passa a demonstrar.
II – O PARÂMETRO CONSTITUCIONAL DA IRREDUTIBILIDADE SALARIAL E O PARÂMETRO LEGAL DA ALTERABILIDADE CONTRATUAL.
A irredutibilidade salarial é valor jurídico expressamente inscrito no inciso VI do art. 7º da Constituição da República, dispositivo voltado à inscrição dos direitos fundamentais a serem observados no âmbito da relação de emprego. Pelo texto, é garantida a irredutibilidade salarial, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo.
A adequada compreensão da carga normativa do dispositivo constitucional passa pela identificação de uma relevante distinção entre irredutibilidade salarial e limites de alteração das condições fixadas em contrato de trabalho, normalmente identificada como inalterabilidade contratual. Enquanto a primeira (irredutibilidade salarial) tem sede constitucional, a segunda decorre de previsões apenas legislativas (limites da alterabilidade contratual).
A distinção é de grande relevância. Bem identificadas ambas, se esclarece com precisão o limite da atuação do legislador em relação a variações ao valor do salário nas relações jurídicas trabalhistas.
Pois bem.
Normalmente, a reflexão acerca do conteúdo jurídico da irredutibilidade aponta no sentido da impossibilidade de redução nominal do valor bilateralmente ajustado, ou seja, um reforço a garantia do pacta sunt servanda, capaz de flexibilização exclusivamente pela via da negociação coletiva. Tome-se, por todos, as palavras de Maurício Godinho Delgado[1]:
Note-se, portanto, que a noção de irredutibilidade busca combater duas modalidades centrais de diminuição de salários: a redução salarial direta (diminuição nominal dos salários) e redução salarial indireta (redução da jornada ou do serviço, com consequente redução salarial).
A distinção oferecida entre redução salarial direta e redução salarial indireta é bastante reveladora e precisa, na medida em que evidencia a existência de duas situações jurídicas efetivamente diversas. Diverge-se, no entanto, em relação à fonte normativa das figuras.
Por um lado tem-se, na hipótese da redução salarial direta, a situação de redução do salário do empregado sem alteração nas condições de trabalho. Há, aqui, portanto, uma redução do salário (contraprestação) em relação à atividade prevista no contrato (prestação). É o desequilíbrio entre prestação e contraprestação ajustados que anima a fixação da irredutibilidade. O fenômeno, assim, é vedado pela Carta Magna, salvo se expressamente autorizado por frutífera negociação coletiva. Ao que tudo indica, o Constituinte presumiu que a participação do sindicato asseguraria uma desejável e eventual capacidade de adaptação do contrato no particular da redução salarial, aliada à alguma proteção ao trabalhador. Não é demais relembrar, inclusive, que a Reforma Trabalhista incluiu na CLT cláusula de contrapartida automática de garantia de emprego em tais casos (CLT, art. 611-A , § 3º).
Diferentemente, na alternativa de redução salarial indireta, tem-se a redução do salário a partir de alterações nas condições de trabalho. Ou seja, o salário (contraprestação) sofre repercussões de alterações que se passam no âmbito da atividade fruto do contrato de trabalho (prestação). A questão, aqui, portanto, diz respeito às hipóteses nas quais será possível, ou não, a alteração do contrato de trabalho, ou seja, hipóteses nas quais será permitido que alterações contratuais repercutam no patrimônio jurídico do empregado, entre eles, eventualmente, o próprio salário.
Sob toda evidência, o artigo 7º, inciso VI, da Constituição não se destina a regular toda e qualquer relação possível entre alteração contratual e redução de benefícios salariais ao empregado. Ele não veda, portanto, toda e qualquer hipótese de redução nominal do salário. A Constituição, aliás, expressamente permite a variação do salário a partir da variação de condições de trabalho.
Já no artigo 7º, inciso VII, a Constituição estabeleceu a possibilidade de percepção de salário variável, desde que observado o mínimo legal. Como se vê, o próprio texto constitucional autoriza que haja, inclusive por previsão contratual, o estabelecimento de salários que se comportarão no tempo de maneira imprevisível, em resposta a alteração de condições de trabalho, desde que assegurado o mínimo. Não há, pois, nessa circunstância, proteção a um valor invariável de ganhos, ainda que se dê a garantia da irredutibilidade do valor indicado em decorrência do trabalho contratado.
O inciso XIII do artigo 7º da Constituição, por sua vez, faculta que o resultado do trabalho extraordinário, quando compensado, deixe de ser pago. Ou seja, mais uma vez, se permite que a contraprestação devida, agora no regime extraordinário, se comporte de forma distinta acaso certa condição se passe no contexto da prestação de serviço, qual seja, a compensação.
A Constituição guarda, portanto, sob o manto da negociação coletiva, a possibilidade de redução do salário quando não decorre ela da alteração de condições de trabalho.
É à CLT, contudo, que incumbe a regulamentação do que pode ser alvo de alteração contratual com repercussões negativas ao bloco de benefícios do empregado. Diz negativas porque, já por força do que estabelecido no caput do art. 7º da Constituição, é livre o empregador para inovar no contrato de trabalho desde que sem prejuízo a benefícios de empregado. Nada impede, portanto, que o empregador, para um exemplo relevante ao que ora se debate, reduza a jornada de trabalho do empregado sem a correspondente redução no salário, ou aumente sua remuneração com a manutenção da jornada. Em tais casos, a inovação decorre da regra geral de permissão de alterações contratuais que não importem em perda de benefícios aos empregados.
Como é a CLT quem define a correspondência entre alterações e repercussões em benefícios dos empregados, não há perplexidade alguma na existência de previsões legais voltadas, efetivamente, à redução nominal do valor de salários a partir de alterações contratuais.
Dito de outra forma, ao legislador cabe, como sempre coube, estabelecer as consequências jurídicas, inclusive salariais, de situações de alteração de condições antes ajustadas de prestação de serviços. E são variadas as situações em que a legislação permite flutuações na percepção do valor nominal do salário.
Tome-se, inicialmente, hipóteses de redução do valor nominal em razão de alterações expressamente definidas na CLT. Refere-se, aqui, às hipóteses de gratificações, adicionais, comissões e gorjetas. Em todas essas situações, o legislador, ao apontar uma relação direta entre certa condição de trabalho e certa remuneração, autoriza, na ausência da condição eleita, a redução nominal do salário. Um empregado que deixa de trabalhar em condições insalubres tem reduzido o valor nominal de seus ganhos; um empregado que deixa o cargo de chefia tem reduzido o valor nominal de seus ganhos; o mesmo se passando com o empregado que deixa de efetuar vendas, com a redução de suas comissões.
Em todas essas hipóteses, foi a lei, ao estabelecer uma relação entre uma certa condição e uma certa vantagem, quem autorizou a redução do valor nominal do salário a partir da variabilidade das condições de trabalho. Daí decorre, inclusive, a relevância, da legislação, em criar a figura da remuneração e salário, justamente para que seja bem identificado, nos termos da lei, o que pode ou não ser objeto de redução nominal.
Acaso tomado o artigo 7º, inciso VI, da Constituição, como óbice a qualquer previsão legislativa de redução do valor nominal do salário, ainda que decorrente de alterações no contexto da prestação de serviços, tais disposições seriam, simplesmente, inconstitucionais.
O mesmo se diz das hipóteses de suspensão do contrato de trabalho. Os artigos 471 e seguintes da CLT indicam variadas situações nas quais o empregado deixará de perceber qualquer salário, em irrespondível redução ao valor nominal ajustado no contrato. Tem-se, por exemplo, que o empregado afastado para cumprir as exigências do serviço militar não terá direito a qualquer salário. Igualmente, é preciso relembrar que a legislação permite, por ato do empregador, a suspensão do contrato por razão disciplinar, situação na qual o salário do empregado também sofrerá redução (art. 474 da CLT).
É possível, igualmente, relembrar a autorização legal de fixação da remuneração por tarefa (art. 78 da CLT), e também as hipóteses de salário variável, como se passa, entre outros, com o contrato intermitente (art. 443, § 3º, da CLT). Em tais hipóteses, o legislador, de forma expressa, permite que sejam contratualmente fixadas condicionantes ao salário a partir das vicissitudes da prestação de serviços. A própria legislação do salário mínimo, inclusive, fixa anualmente seu valor em base horária, diária e mensal.
A Constituição, ao permitir que o salário seja ajustado de maneira proporcional a unidades específicas de tempo (como dia ou hora) ou de produção (tarefa ou atividade), autoriza de forma expressa que as vicissitudes do contrato de trabalho repercutam no valor nominal do salário percebido mensalmente pelo empregado. Há, pois, ampla flutuação no valor do salário, em reduções e acréscimos sucessivos, e plenamente válidos.
Como se vê, a leitura da CLT confirma o que se extrai da interpretação dos incisos VI, VII e XIII do art. 7º da Constituição da República. Enquanto a Constituição veda a redução do salário com a manutenção das condições de trabalho, a CLT regulamenta as hipóteses nas quais poderá se dar válidas alterações ao contrato de trabalho, mesmo com redução ao valor do salário nominal.
Resgatando a classificação proposta por Maurício Godinho Delgado, a redução direta do salário é vedada e protegida nos termos do artigo 7º, VI da Constituição. As hipóteses de alteração contratual com reflexos no salário, ainda que importem em redução de seu valor nominal, contudo, são tratadas pela CLT, no panorama infraconstitucional, portanto.
É, inclusive, por tal razão que o artigo 503 da CLT não foi recepcionado pela Constituição de 1988. Segundo o dispositivo, em caso de força maior, estariam empregadores autorizados a reduzir em até 25% (vinte e cinco por cento) a remuneração de seus empregados. A inconstitucionalidade do dispositivo decorre do fixação de hipótese de redução salarial sem alteração das condições de trabalho, em autêntica redução salarial direta. Não se cogita do artigo 503 da CLT hipótese de permissão de alteração contratual, com consequente repercussão no salário, mas sim de redução, per si, do salário ajustado.
É adequado, pois, afirmar-se a incompatibilidade do artigo 503 da CLT ao texto constitucional. O mesmo não se pode dizer, portanto, das variadas e inúmeras hipóteses de redução salarial decorrente da alteração de condições de trabalho impressas na CLT, como acima se viu.
Bem identificado o campo constitucional e infraconstitucional de proteção à redução do salário, é hora de examinar-se o teor da Medida Provisória nº 936/2020, com vistas à análise de sua constitucionalidade.
III – A MP 936/2020 COMO CRIADORA DE HIPÓTESES LEGAIS DE ALTERAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO COM REPERCUSSÃO NO SALÁRIO. CONSTITUCIONALIDADE.
Pela via da Medida Provisória nº 936/2020 foi conferido a empregadores e empregados, por meio de necessário ajuste individual, a prerrogativa de redução da jornada de trabalho com a proporcional redução do salário. Ao nível do contrato individual, foram definidas as faixas de redução da jornada em 25% (vinte e cinco), 50% (cinquenta), 70% (setenta) ou 100% (cem) por cento, hipóteses na qual se estará diante da circunstância da suspensão do contrato de trabalho.
Em contrapartida, foram estabelecidas faixas de ajuda a ser conferida por meio de benefícios estatais. A ideia é a de que as perdas salariais experimentadas por empregados em razão da redução da jornada sejam ao menos amenizadas pelo pagamento de idêntica proporção à redução, mas calculadas sobre a base de cálculo própria ao benefício do seguro desemprego.
Embora estabelecida a avança bilateral como requisito para a adesão ao programa, é certo que as condições estão detalhadamente indicadas no texto. Assim, apenas para operações envolvendo empregados com ganhos salariais até 3 (três) salários mínimos, bem como empregados ditos hiperssuficientes (art. 444, par. único da CLT), seria possível a adesão ao sistema por acordo individual para além do limite de 25% (vinte e cinco por cento). Para os demais casos, apenas por meio de negociação coletiva será possível aderia às condições estabelecidas na norma. Fixou-se, ainda, o compulsório pagamento de 30% (trinta por cento) do valor do salários no caso de suspensão do contrato de trabalho acordada para empresa com receita bruta anual superior a R$ 4.8 milhões, hipótese na qual o benefício emergencial será da ordem de 70% (setenta por cento) do valor base do seguro desemprego.
Foi definida, ainda, a garantia de emprego ao longo da manutenção das condições especiais definidas, e com idêntica projeção a partir do retorno à normalidade.
Em síntese, portanto, para o objetivo do presente estudo, tem-se a autorização, pela via da Medida Provisória, de alteração das condições de trabalho – redução progressiva da jornada de trabalho – com direta e proporcional repercussão no salário nominal estabelecido no contrato de trabalho, como condições legalmente fixadas para acesso a benefício social. O salário hora, na hipótese de redução da jornada, permanece íntegro.
Pois bem.
Como já adiantado, a crítica mais contundente dirigida à validade da Medida Provisória diz respeito à sua alegada incompatibilidade com os termos do artigo 7º, inciso VI, da Constituição da República. É esse, por exemplo, o fundamento mais expressivo da ADI nº 6363, ajuizada no STF em face da norma, e também o fundamento da liminar concedida, conforme se verá a seguir.
Não há, contudo, conforme o já formulado na seção II deste, como se cogitar de inconstitucionalidade da Medida Provisória.
O sentido do art. 7º, inciso VI, da Constituição da República é o de vedar a redução salarial na hipótese de manutenção das condições de trabalho, salvo negociação coletiva. As regras e possibilidades de alteração do contrato de trabalho, inclusive com reflexos nos ganhos nominais dos trabalhadores, é matéria própria da normatização infraconstitucional, com especial ênfase à CLT.
Nessas condições, o que impede a redução da jornada por mero acordo individual de trabalho não é a Constituição, mas sim a própria legislação ao estabelecer o princípio da inalterabilidade contratual lesiva.
A Medida Provisória, nos termos do artigo 62 da Constituição, por possuir força de lei, se equipara em hierarquia ao texto consolidado, sendo, pois, capaz de acolher novas hipóteses de alteração lícita do contrato de trabalho, inclusive com repercussões in pejus para os empregados. Tal se torna ainda mais evidente quando se está a implementar um benefício estatal de natureza social, como se passa na espécie.
Tudo considerado, pois, tem-se que ao legislador é assegurado o poder criativo de criação de hipóteses específicas de alterações in pejus do contrato de trabalho, mesmo que elas importem em redução do valor do salário, como se passa com a autorização de redução da jornada com consequente e proporcional redução da remuneração e tantas outras. Tais circunstâncias são apresentadas no ordenamento jurídico nacional como exceções legais e válidas à regra geral do princípio da norma mais favorável.
Para além da prerrogativa do legislador do estabelecimento de hipóteses de alteração in pejus do contrato, o que já asseguraria, per si, a constitucionalidade da Medida Provisória, não é demais mencionar a razoabilidade material do que proposto na norma. Para além da redução salarial contratual diretamente proporcional à redução da jornada, com a preservação necessária do salário hora, é previsto, em contrapartida, a fixação de um período de garantia de emprego e auxílio governamental.
Assim, seja pelo prisma da competência legislativa, seja sobre o aspecto de proporcionalidade da medida, não há como se cogitar na inconstitucionalidade da norma à luz do artigo 7º, inciso VI, da Constituição.
Vale registrar, em exaurimento ao debate, que até hoje não foi bem esclarecido o alcance do inciso XIII do art. 7º da Constituição.
O texto, como bem se sabe, indica que o fenômeno da compensação, assim como o da redução da jornada, estão ambos condicionados a “acordo e convenção coletiva”. Embora se aceite, há muito, a possibilidade de compensação por acordo individual a partir do que indicado no texto constitucional – o entendimento da S. 85/TST data de 2001 – não se evoluiu para uma solução confortável em relação à redução da jornada.
Aparentemente, a interpretação de que a redução da jornada ali prevista estaria autorizada para o acordo individual sem qualquer repercussão na remuneração (o empregador poderá reduzir a jornada desde que mantenha a remuneração) sob todas as vênias, importa em interpretação que neutraliza sentido ao texto constitucional. Isso porque a conclusão da possibilidade de redução da jornada por acordo individual sem qualquer repercussão no contrato já decorre do caput do art. 7º da Constituição, tornando sem sentido próprio o que inscrito no inciso XIII.
Se não há na lei palavras inúteis, a manutenção do entendimento, verdadeiramente, deve seguir atraindo atenção e reflexão jurídica, até que se chegue ao sentido autônomo ao dispositivo.
IV – CONCLUSÃO. IMPRESSÕES SOBRE A LIMINAR CONCEDIDA NOS AUTOS DA ADI 6363 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
O sentido do art. 7º, inciso VI, da Constituição da República, conforme buscou-se identificar nessas linhas, é o de vedar a redução salarial na hipótese de manutenção das condições de trabalho, salvo negociação coletiva. As regras quanto às possibilidades de alteração do contrato de trabalho, inclusive com reflexos nos ganhos nominais dos trabalhadores, são matérias próprias da normatização infraconstitucional, e não constitucional.
A Medida Provisória 936/2020, assim, não veicula regra de redução salarial, mas sim, verdadeira regra de alteração contratual. É por ela definido, de forma expressa, um benefício social que decorrerá da redução da jornada de trabalho, que passa a ser, por isso e em seus estritos termos, causa de autorizada e proporcional redução salarial.
Trata-se de mais uma das variadas hipóteses legais de impactos no salário nominal do empregado a partir de alterações juridicamente válidas ao contrato de trabalho, a exemplo de suspensões legais e conversões de situações envolvendo adicionais legais e gratificações.
Pois bem.
O Supremo Tribunal Federal em liminar monocrática nos autos da ADI 6363, adotou entendimento em sentido contrário. Para o Relator, o Ministro Ricardo Lewandowksi, a Medida Provisória, ao possibilitar a redução da jornada de trabalho – com redução salarial – e mesmo a suspensão do contrato por acordo individual, afrontaria o artigo 7º, inciso VI, da Constituição. Foram também mencionados outros princípios, como o da dignidade da pessoa humana, inscrito no artigo 1º, inciso III, da Carta.
Pela liminar, foi conferida intepretação conforme à Constituição à Medida Provisória para condicionar a validade dos acordos individuais de redução e suspensão à aquiescência de sindicatos, a qual será presumida – tácita – na hipótese de o Sindicato, comunicado do ajuste, quedar-se inerte. Eis o texto do dispositivo:
Isso posto, com fundamento nas razões acima expendidas, defiro em parte a cautelar, ad referendum do Plenário do Supremo Tribunal Federal, para dar interpretação conforme à Constituição ao § 4º do art. 11 da Medida Provisória 936/2020, de maneira a assentar que “[os] acordos individuais de redução de jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária de contrato de trabalho [...] deverão ser comunicados pelos empregadores ao respectivo sindicato laboral, no prazo de até dez dias corridos, contado da data de sua celebração”, para que este, querendo, deflagre a negociação coletiva, importando sua inércia em anuência com o acordado pelas partes.
Não há dúvida tratar-se de instigante e desafiador debate. O que se propôs neste texto foi construção que parte do sentido da norma constitucional, para, daí, identificar-se o espaço conferido à criatividade legal. O confronto examinado nesse texto, portanto, foi o da liberdade legal em face dos limites constitucionais. Ao se identificar que a lei não estipula simplesmente a possibilidade de redução do salário, mas, antes, estabelece com clareza os limites em que tal redução pode ser realizada – proporcionalmente à redução da jornada, garantindo-se o salário hora – conclui-se que a norma trata, em verdade, de autorização legal de alteração contratual.
Eis, portanto, o que parece ser o ponto fundamental das divergentes conclusões aqui referidas. Na racionalidade adotada do julgamento, a lei simplesmente teria criado hipótese de acordo individual autorizando a redução do salário. A legislação, nessa perspectiva, seria inválida por transferir ao contrato individual o poder para impor reduções salariais, algo restrito ao concerto coletivo.
Não se considerou relevante no julgamento, contudo, o aspecto de que os termos do tal acordo individual foram inteiramente estabelecidos pela lei. Não há espaço, no âmbito da MP 936/2020, para qualquer criatividade contratual.
Não se trata, pois, verdadeiramente, de um acordo individual, mas sim da possibilidade de adesão a um programa governamental de auxílio social. Criado o programa, foram estabelecidos seus requisitos, constando, entre eles, a aquiescência formal de empregado e empregador. E todo o panorama, não é demais relembrar, foi estabelecido pela lei.
A MP 936/2020 representa a definição, pela legislação, de um espaço de transformação do contrato de trabalho, como se passa, sem estranhamentos, com outras hipóteses já previstas na lei. A disposição, pois, é de alterabilidade contratual prévia e exaustivamente decorrente da lei. A liberdade quanto à adesão ou não ao programa não modifica a natureza da previsão.
A redução salarial, ou mesmo a suspensão, por si só, não atraem necessariamente o limite do art. 7º, inciso VI, da Constituição. Para tanto, é preciso bem definir os contornos da proteção, para, apenas a partir daí, fazer o cotejo prático com situações da realidade normativa. Tal se mostra ainda mais evidente quando se cogita de circunstâncias de ação governamental direta, como se passa com auxílios previdenciários ou trabalhistas, como no caso presente, em que foi instituído um específico benefício, o Benefício Emergencial para Preservação do Emprego e Renda, e suas inúmeras condições.